quinta-feira, 18 de junho de 2015

- A tua sorte é que eu esqueço as coisas más que tu fazes.
- Coisas más? Que coisas más é que eu fiz?
- Não me lembro.
Se não fossem as minhas malas cheias de memórias
Ou aquela história que faz mais de um ano
Não fossem os danos
Não seria eu...

Clarice Falcão - Capitão Gancho

Viciados em companhia
Sozinho é uma coisa, solitário é outra. Sozinho é com, solitário é sem.
Não confio no amor de quem não consegue ficar sozinho.
Nunca foi ao cinema sozinho, nunca viajou sozinho, perambula pela rua feito um cão que se perdeu do dono. Sentar na lanchonete de uma livraria para tomar um cafezinho assemelha-se a uma catástrofe. Sua solidão lhe parece vergonhosa e indigesta, é evitada com o mesmo afinco com que evitaria a morte.
Para ele, qualquer parceria é melhor que nenhuma. Uma conversa enfadonha é melhor que o silêncio. Um chato é melhor que ninguém. É praticamente um viciado em companhia. E, como todo viciado, critério não é o seu forte.
Não confio no amor de quem não se suporta.
De quem telefona a fim de papo furado, de quem envia mensagens só para ouvir o sinal da chegada da resposta, de quem precisa se iludir de que não está só. Quem de nós não está só?
Uma manhã de frente para o mar, uma tarde com um livro, uma noite com um filme, três dias inteiros numa cidade estranha, uma rua que nunca foi atravessada, um museu com tempo livre à vontade, uma cama vazia – para ele, simulacros do inferno.
Não confio no amor de quem não se entretém.
De quem se desespera em frente ao espelho, de quem não consegue se maravilhar num jardim, de quem não viaja ao ouvir uma música, de quem não gosta de andar de ônibus enquanto aprecia a paisagem pela janela, de quem não se sente inteiro num trem.
Sozinho é uma coisa, solitário é outra. Sozinho é com, solitário é sem.
Eu sozinha sou muitas. Sozinha, tem mais sabor minha comida, tem mais foco o meu olhar, tem mais profundezas o meu ser. Sozinha tem mais espaço minha liberdade, tem mais imaginação a minha fantasia, tem mais beleza a minha individualidade. Sozinha tem mais força o meu pensamento, mais inteireza a minha vontade.
Não confio no amor de quem negocia sua autenticidade.
Como amar de verdade outro alguém, se não sabe de onde esse amor vem? Onde foi gerado, por que é necessário, que atributos ele contém? Amar é doar, não vem do doer. Amar é saber que aquele que a gente ama, se faltar, vai deixar saudade, mas não nos transformará num cadáver a vagar. Não confio em quem ama para ser um par, não confio em quem quer apenas se enquadrar, não confio em quem ama por não se tolerar.
Amar tem que ser extraordinário. Além do que já se tem.
Se sozinho você não se tem, amar vira tubo de oxigênio, ânsia, invenção e enredo barato, perde a dignidade, o amor vira muleta e trucagem. Confio no amor de quem não precisa amar por sobrevivência, de quem se basta e mesmo assim é impelido a se dar, porque dar-se é excelência, não é mendicância.
Não confio no amor de quem não se ama em primeira instância.
Martha Medeiros

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Eu entendo!

Se tem uma mania -e bem problemática– é o meu hábito de desligar o celular quando ele toca, abrir o olho uma hora depois, sair correndo porque já estou em cima da hora, procurar uma roupa que não precisa passar e torcer para que todos os sinais estejam verdes. 
Hoje eu não acordei atrasada. 
Hoje eu acordei duas horas antes, sem a sensação de estar sedada, porque não conseguia dormir. Devo tomar umas três canecas de café ao longo do dia, duas aspirinas, 3 litros de água e comer alguma coisa no meio termo. Sei que vou ficar batendo os pés debaixo da mesa numa inquietação que me acompanha desde de sempre, como se eu tivesse procurando alguma coisa. Como preenche o tempo que sobra? Da mesma forma que a gente preenche a falta de um amor que sempre esteve ali: não preenche, a gente só tenta substituir as horas vagas com alguma atividade nada importante.
Saí de casa duas horas mais cedo e parei num café que não vale metade do dinheiro que cobra, mas paga o silêncio. Enquanto passo as folhas de um livro qualquer, paro para observar um senhor na mesa do canto. Pessoas sozinhas em cafés caros que pedem alguma coisa enquanto anotam ou leem estão sempre fugindo de algo ou carregando um fardo. Sempre.
Bom, eu tinha duas horas para pensar e repensar no que foi me foi dito. A violência sentimental de quem ama a gente é brutal quando sincera, e um tanto quanto cruel também.
Paguei o café e continuei observando o senhor sentado no canto lendo Caio. Entendo a dor. Não sei se foi a namorada, namorado, mãe ou melhor amigo. Não entendo o fardo alheio como entendo o meu. Vejo abelhas, ele contorce, abana, tenta manda-las embora. Ele tenta, joga o café fora, não tem mais nada doce morando ali. E elas continuam avançando, devorando, ameaçando ferroadas. Não entendo a dor alheia. E nem ele entende que não adianta balançar os braços, tentar expulsar ou pagar um café caro em um lugar silencioso para botar as coisas pra fora. As dores são como as abelhas, com um único e agravante elas já estão dentro dele e dão ferroadas o tempo todo. Eu entendo.

terça-feira, 2 de junho de 2015

A gente começa entender, depois que a gente cresce que,  a proteção amorosa, o suporte, a delicadeza, precisam começar na nossa relação com nós mesmos.





Eu me perguntei porque quando mais precisamos de nós mesmos, geralmente mais nos faltamos. Que estranha escolha é essa, que faz a gente alimentar os abismos, quando mais precisa valorizar as próprias asas.

Se eu falar que hoje acordei triste, que não foi fácil sair da cama, mesmo sabendo que o sol estava bonito lá fora, mesmo sabendo que havia muitas providências a tomar, se eu disser que foi assim, o que você me diz? Se eu lhe disser que hoje não foi um dia como os outros, que não encontrei energia nem pra sentir culpa pela minha preguiça, que hoje levantei devagar e tarde e que não tive vontade de nada, você vai reagir como?
Você vai dizer “anima” e me recomendar um antidepressivo.
Você vai fazer isso porque gosta de mim, ou talvez porque é mais um que não tolera a tristeza: nem a minha, nem a sua, nem a de ninguém. Tristeza é considerada uma anomalia do humor, uma doença contagiosa, que é melhor eliminar desde o primeiro sintoma. Não sorriu hoje? Medicamento. Sentiu uma vontade de chorar à toa? Gravíssimo.
A verdade é que eu não acordei triste hoje, nem mesmo com uma suave melancolia, está tudo normal. Mas quando fico triste, também está tudo normal. Porque ficar triste é comum, é um sentimento tão legítimo quanto à alegria, é um registro de nossa sensibilidade, que ora gargalha em grupo, ora busca o silêncio e a solidão. Estar triste não é estar deprimido.
Depressão é coisa muito séria, contínua e complexa. Estar triste é estar atento a si próprio, é estar desapontado com alguém, com vários ou consigo mesmo, é estar um pouco cansado de certas repetições, é descobrir-se frágil num dia qualquer, sem uma razão aparente – as razões têm essa mania de serem discretas.
“Não quero te ver triste assim”, sussurrava Roberto Carlos em meio à música. Todos cantam a tristeza, mas poucos a enfrentam de fato. Os esforços não são para compreendê-la, e sim para disfarçá-la, sufocá-la. Claro que é melhor ser alegre que ser triste (agora é Vinícius), mas melhor mesmo é ninguém privar você de sentir o que for. Em tempo: na maioria das vezes, é a gente mesmo que não se permite estar alguns degraus abaixo da euforia.
Tem dias que não estamos pra samba, pra rock, pra hip-hop, e nem pra isso devemos buscar pílulas mágicas para camuflar nossa introspecção, nem aceitar convites para festas em que nada temos para brindar. Que nos deixem quietos, que quietude é armazenamento de força e sabedoria, daqui a pouco a gente volta, a gente sempre volta, anunciando o fim de mais uma dor – até que venha a próxima, normais que somos.